Sobre a primavera

“Ao acordar, naquele dia preliminar da Primavera, senti imediatamente que alguma coisa tinha acontecido de muito fundamental na ordem do mundo. Eu, homem de despertar difícil, pulei da cama tão bem-disposto e leve que, por um momento, assustei-me com a sensação indizível que sentia. Ao pegar o copo habitual para a minha água matutina, notei que se achava cheio de uma substância volátil, penetrada de uma linda cor violeta. E não sei por que bebi do copo vazio, estranguladamente, o ar da Primavera, de gosto azul e fragrância fria, com um peso específico de sonho.
Durante alguns minutos nada me aconteceu. Tomei meu café, fumei um cigarro e dei uma olhada nas coisas. Mas de repente senti que em mim a matéria começava a se transformar. Palpitações violentas confrangeram-me o coração e eu mal conseguia respirar.
(…)
Tudo isso constituía um fenômeno muito curioso. Os cheiros mais estranhos, os mais perversos, os mais doces, os do amor, os da solidão, perseguiam-me como outros tantos espíritos da Primavera. Um cheiro dolorosíssimo de morte chegou-me ao mesmo tempo que um odor de nascimento. Soube que alguém morria e nascia naquele instante particular do mundo e senti o cheiro da minha vaidade de me saber dono de um tão grande privilégio.
(…)
E depois senti um cheiro sobrenatural, um gigantesco cheiro de sobrenatural, um cheiro de éter, um cheiro de cristal transparente em vibração, um cheiro de luz antiga, ainda fria dos eternos espaços por onde passara em seu caminho para a Terra. A Primavera cheirava toda para mim, só para mim, desnudada, a dançar na manhã azul perfeita, embriagante, toda olhos claros e sorrisos, a abrir com beijos de brisa a boca infantil das corolas nascituras. E dentro da Primavera senti um cheiro mágico de Paz.”

Do poetinha Vinicius de Moraes